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sexta-feira, 15 de outubro de 2010

TEXTO "À CLEF", OU FICÇÃO?

Miguel Moedas (professor) enviou-nos o seguinte texto. Fica a pergunta para o leitor: trata-se de um texto de escrita lúdica ou de um texto confessional, autobiográfico,com base em personagens e situações reais, enfim uma catárse em prosa poética (aconselha-se a leitura de"Autopsicografia" para que se possa responder à questão)?

MÃE HÁ SÓ UMA
Não me peças para te amar como me amaste. Não me peças para te carregar como me carregaste.
Mãe és de alguém que eu já fui. Filha sou de alguém que já não és tu.
Morrestes tu para mim quando eu nasci. Morri eu para ti quando deste à luz. Ausentes ficámos, eu do teu tempo, tu do meu espaço. Moeda de troca para a felicidade alheia.
Deste-me um nome que não é o meu. Teu nome não sei que chamar.
Não sou a varanda solarenga que gostavas que fosse. Sou antes o sótão grande e escuro da tua alma.
Aquele sítio só teu onde comemoraste cada um dos meus aniversários. Onde imaginaste cada um dos meus sorrisos. Onde te angustiaste com cada um dos meus choros que nunca escutaste. Onde rezaste para que eu recuperasse das doenças que nunca tive.
Ferida aberta, pequena para albergar a infecção do teu remorso. Lugar onde cresce mais e mais a tua angústia, agora que fotocopias a tua velhice no espelho de cada manhã.
Não. Não me peças para te falar das netas que não tens e nas quais insistes em encontrar a menina que tantas vezes espreitaste, ao longe, e que nunca tiveste a coragem de reclamar. Só para ti. Só tua. A menina que não consolaste no dia em que ficou órfã da mãe que nunca teve. A menina que não protegeste da maldade do mundo. A menina que não ensinaste a ser mulher.
Estás fechada a cadeado na cave mais minúscula do meu coração. Parte de mim que eu não conheço e que todos os dias enterro mais fundo num ritual de esquecimento. Parte de mim que eu nunca tive, guardado na parte de ti que tu nunca terás.
Viajámos a vida em carruagens diferentes. Onde tu sais eu entrei, onde tu entraste eu saio. Cruzamo-nos sempre sem nunca nos encontrarmos, bilhete só de ida na mão. Olho para ti sem te ver. Tu vês-me sem me olhar. Faces diferentes da cegueira de almas gémeas condenadas por insolvência.
Esgrime os teus argumentos com a tua consciência. Só tu podes acusar-te e defender-te. Ajuíza-te em causa própria. Absolve-te e condena-te. Só tu podes perdoar-te a pena a que já te condenaste.
Expulsaste-me duplamente. De dentro de ti e para fora de ti. Vazia em dobro ficaste, abortada de amor.
Abandona-me agora que eu não te quero encontrar.
Mãe há só uma e não és tu.

Miguel Moedas

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