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sexta-feira, 22 de outubro de 2010

A TEORIA DO PRÉ-CINEMA É FUNDAMENTAL PARA QUE SE ENTENDAM AS CRÓNICAS DE FERNÃO LOPES

1- A teoria do pré-cinema
Recorrendo à teoria do pré-cinema, consegue-se entender um dos objectivos primordiais - o da propaganda ad eternum da Dinastia de Avis - que presidiu à elaboração da cronistica redigida por Fernão Lopes no longínquo século XV. Para que se perceba esta ideia há que começar por dizer o seguinte: estes textos são paraliterários, escritos num português medieval (onde proliferam, por exemplo, os hiatos), e são um retrato inequívoco da mundividência medieval, absolutamente dicotómica, que medeia entre o sagrado e o profano. Os escritos de Fernão Lopes estão repletos de acção (batalhas, cavalgadas, revoltas populares, assassínios atrozes, planos maquiavélicos), descrições físicas e psicológicas exímias das personagens, umas assumindo o papel de heróis outras o de vilões, bem como cenários interiores e exteriores. Os protagonistas são o primeiro rei da Dinastia de Avis, mas também os seus antecessores D. Pedro I e D. Fernando, secundados por personagens femininas como D. Inês, no primeiro caso e D. Leonor Teles no segundo.
D. Filipa de Lencastre acaba por ter um papel menor na Crónica de D. João I, sobretudo face à relevância de Leonor Teles na Crónica de D. Fernando e na de D. João I. Leonor é uma personagem que fica para sempre, verdadeiro paradigma da maldade.
Portanto estes textos têm à partida imensas potencialidades cinematográficas, até ao momento muito pouco exploradas, não só por terem intrigas e personagens interessantes, cinemáticas, mas também por serem um fresco da sociedade medieval portuguesa e um caso em que a realidade ultrapassa definitivamente a ficção.
A encomenda de D. Duarte a Fernão Lopes, a de cronicar o carismático reinado de seu pai e dos respectivos antecessores, tinha como grande objectivo deixar para a posteridade a descrição dos tempos difíceis relativos à Crise Dinástica de 1383-85, o modo como foram superados pela dupla imbatível D. João, Mestre de Avis e Nuno Álvares Pereira (o primeiro assumindo o papel do político versátil e o segundo o do militar imbatível), bem como a acalmia posterior. Enfim, a felicidade que permitiu refundar um reino que tinha sido, segundo concepção de Fernão Lopes, superiormente dirigido até ao reinado de D. Fernando. Assim, as três crónicas permitem ao leitor estabelecer um paralelo verdadeiramente estimulante entre os três reinados a que se reportam, e não é difícil concluir, com facilidade, que o de D. Fernando acaba por ser o mau exemplo para os reis posteriores e para o povo (pela sua fragilidade militar, pela forma como delapidou o tesouro real que tanto trabalho deu a juntar aos seus antecessores) que os mesmos iriam governar. O reinado de D. João I será, então, um grande exemplum…didáctico para a realeza que secundou D. Duarte e para a que com ele conviveu!
Mas de que forma poderá a referida teoria, ( que por vezes revela alguns excessos na sua concepção), contribuir decisivamente para que se entenda as crónicas do trabalhador incansável, que recebeu de D. Duarte uma tença para retratar, em pequenos capítulos (que iam sendo lidos na corte), o promissor começo da Dinastia de Avis?
Jorge Urrutia , catedrático espanhol, contribuiu para a definição desta teoria, a do cinema avant la lettre, porque descreveu o percurso da sua génese, o que permite um entendimento claro da mesma. Tese, essa, que teve como progenitores alguns autores francófonos e hispânicos. O nascimento tardio só foi confirmado no ano de 1936, mas depois esta teoria evoluiu como uma bola de neve. Uma ideia extraordinária (pela simplicidade que encerra) que reluziu em Reflexions sur la Literature da autoria de Albert Thibaudet, no já referido ano de 1936, onde se sublinha a preocupação humana, secular, de fixar (e esta é uma palavra-chave), pela palavra, a realidade circundante, já que as cameras de filmar são recentes.
Joaquin de Entrambasaguas, considerou, em 1954, que muitas obras literárias anteriores ao cinematógrafo, apresentam aspectos absolutamente filmáveis, porque o espírito que animou a sua redacção encerrava, inconscientemente, a expressão cinemática e, entre outros exemplos, refere os da Divina Comédia, Odisseia, Ilíada e Eneida. Esta ideia do autor espanhol é, sem dúvida, muito mais aplicável às crónicas, caleidoscópicas, do nosso Fernão Lopes. A propósito de expressão cinemática, nos textos do nosso cronista coexistem dois tipos de linguagem: a denotativa,através da qual as palavras apenas têm o seu valor real, reflectindo uma aproximação à realidade e uma outra,em muito menor grau, a conotativa, onde são evidentes os tropos. Por fim, existem as imperfeições medievais como os pleonasmos.
1955 e o tempo não pára! Este foi um ano mirabolante (para a evolução da nossa teoria) em que Pierre Francastel se questionou quanto ao facto de poder ter existido um cinema anterior ao mesmo, ou seja antes da invenção do próprio cinema. Afirmação fundamentalista é certo, mas que acaba por ser determinante para o entendimento e consolidação da teoria do pré-cinema.Entendia Francastel que, no passado, já tinha existido uma atitude pré-filmica operacionalizada através do modo de olhar a realidade circundante e de a fixar em texto.
Passados nove anos, Étienne Fuzellier teorizou o seguinte: desde Homero um grande número de escritores foram "visuais", reforçando as ideias de Joaquin Entrambasaguas;
Mais ainda, Fuzellier considerou que desde sempre existiram guionistas, segmentadores, montadores, que antecipam, através da palavra, a imagem. Esta é uma literatura, segundo o autor, que pretende “fazer ver”, uma literatura que é constituída por um repertório de obras que podem ser traduzidas por imagens. E são realmente muitas as obras que se enquadram neste pressuposto. A esses autores só faltou mesmo uma camera e, voltamos a dizer que Fernão Lopes é um deles.
A teoria continua a evoluir, a consolidar-se, e, pela primeira vez, através de Fuzellier, sugeriu-se que o Cinema e a Literatura coincidem na conformação dos géneros. Mas, eis que surge o exagero: alguns teóricos do pré-cinema, Fuzellier, Paul Leglise e outros, pretendiam, a determinada altura, que o ensino da literatura, as obras clássicas deveriam ser analisadas através de planos cinematográficos! Na realidade acaba por ser um trabalho interessante percebermos o “olhar de Virgílio” e delimitarmos os primeiros planos em que se enquadram Juno ou Eneias no primeiro livro da obra virgiliana, tal como o fez Paul Leglise, em 1958, no entanto este acaba por seu um percurso redutor.

2 - Adequação desta teoria aos Estudos literários Medievais
2.1 O Guionista
Existem semelhanças significativas entre a crónica lopesiana e o guião cinematográfico, ou televisivo da actualidade e semelhanças evidentes entre o trabalho do cronista e do guionista. Estes dois tipos de texto poderão conter, em simultâneo, personagens integradas em enredos, a narração de histórias dinâmicas e interessantes, conflitos declarados que conferem interesse à intriga, o uso do discurso directo, uma estrutura dramática conseguida, técnicas de gestão do tempo e uma linguagem simples e acessível ao leitor ao espectador. É possível, então, dizer-se que este Fernão Lopes poderá ser, afinal, um argumentista avant la lettre? O que é facto é que os seus textos, em função da sua intenção de deixar “filmes” dos reinados dos três reis em causa para a posteridade, acabam por estar muito próximos (sobretudo em relação à Crónica de D. João I) do que é o guião cinematográfico. Por isso, Fernão Lopes será, em nosso modesto entender, um pseudo-guionista com séculos de antecedência, facto que deriva da sua atitude pré-fílmica.
2.2 - O trabalho de montagem
Fernão Lopes procurou reproduzir a realidade histórica e a sua pena poderia corresponder a uma máquina de filmar. Poderia ser (imaginariamente) o cineasta ao serviço de D. Duarte. O que está aqui em causa é a importância do (seu) olhar, do modo como focaliza os acontecimentos. Contudo o que ele fez verdadeiramente bem – perdoe-se o anacronismo - foi um “trabalho de montagem”( dos testemunhos recolhidos, dos que viram os acontecimentos, por exemplo quando da batalha de Aljubarrota), mas de uma “montagem invisível” que procura encapotar a visão subjectiva da “camera de filmar”, ou da própria “montagem”. Este trabalho de Fernão Lopes foi o da recomposição do que escutou e leu. Convenhamos que acaba por ser um trabalho de filmagem, mas em segunda-mão. E o que filmou e remontou o cronista? Muita coisa! Para além dos reis de quem fala nas suas crónicas (e a sua "camera” acompanhou-os permanentemente), os ambientes cortesãos, as cidades do seu reino, o povo, os burgueses, a guerra com os castelhanos, as festas, as procissões, e muitos outros acontecimentos, ou seja “filma” (ou volta a “filmar”) os séculos XIV e XV em Portugal, desde o reinado de D. Pedro I.

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